O Alentejo dos sem-terra
"Na próxima terça-feira completam-se 35 anos sobre a I Conferência da Reforma Agrária. Que permitiu as ocupações de terras no Ribatejo e Alentejo."
Quem é ela? A pergunta fica no ar por alguns segundos, mas logo alguém diz: "É a Qlita, quase de certeza." E acrescenta: "Vê-se pelo sorriso."
Nas antigas celas da cadeia de Montemor-o-Novo, onde desde há dois anos está depositado o arquivo da Reforma Agrária, já não estão presos os alentejanos que eram apanhados a roubar, a meio do século passado - o século XX. Podiam ser coisas de valor, mas também ficavam na cadeia muitos que escondiam nos bolsos algumas bolotas que tiravam da boca dos porcos para matarem a fome ou algum peixe que pescavam nos ribeiros das grandes propriedades do Alentejo e que ia para a mesa, onde, de muito, só filhos havia.
Qlita (diminutivo de Marcolina Malhão) sabe que a sua fotografia anda por aí, mas não estava à espera que trinta e muitos anos depois alguém lhe aparecesse por causa desse instante de que pouco se lembra. Não sabe quem a fotografou, põe-se a pensar, e a memória diz-lhe que terá sido durante uma manifestação do 1.º de Maio de 1977. Certeza, só tem uma, de que estava com um chapéu com fitas e um emblema da sua Unidade Colectiva de Produção (UCP) - a José Adelino do Santos -, um lenço muito bonito às riscas brancas e pretas e uma saia de que gostava muito sobre as calças: "Como as ceifeiras usavam naquela época." Do resto desse dia, a memória varre-se.
É por essa razão que o Arquivo Municipal está a tratar cerca de 60 fundos que as UCP entregaram para que a história de uma época não se perca. A responsável pela instituição é Indalete Lebre, que há dois anos toma conta do espólio e da organização da documentação que chega a monte para ser tratada e arquivada em múltiplas caixas identificadoras da cooperativa e do conteúdo. Há ali de tudo, e alguns documentos já foram aparados das dentadas dos ratos que provaram o sabor daquelas folhas enquanto não foram entregadas à guarda do arquivo. Há folhas de contabilidade, facturas e muitas actas. Uma delas relata como correu a primeira reunião da UCP da Comenda de Santa Justa, a 5 de Abril de 1977, em que os três temas sobre a mesa eram o preço a fixar para a carne do borrego; a plantação de arroz e de tomate e a "'despença' de pessoal".
Na sala de expurgo do arquivo, está a trabalhar Adelaide Menino. É a responsável por pôr em ordem os milhares de folhas que ainda aguardam pelo trabalho de catalogação. Antes, irá preparar os documentos, tirando os agrafos ferrugentos - que se acumulam numa pilha ao fim de um dia de trabalho -, retirar a sujidade das folhas e limpar o pó que cobre a maioria deles. Por obrigação, Adelaide já tem de observar cada um deles, mas acaba sempre por demorar um pouco num ou noutro porque não resiste a olhar para alguns com mais atenção. É que muitos dos nomes que vê surgir na lista de salários a pagar são seus conheci- dos: "Uns já morreram, mas de outros lembro-me muitíssimo bem."
Muitas das situações descritas nas actas das reuniões são-lhe familiares porque também foi cooperante da UCP Pedro Soares, na Torre da Gadanha....
Qlita (diminutivo de Marcolina Malhão) sabe que a sua fotografia anda por aí, mas não estava à espera que trinta e muitos anos depois alguém lhe aparecesse por causa desse instante de que pouco se lembra. Não sabe quem a fotografou, põe-se a pensar, e a memória diz-lhe que terá sido durante uma manifestação do 1.º de Maio de 1977. Certeza, só tem uma, de que estava com um chapéu com fitas e um emblema da sua Unidade Colectiva de Produção (UCP) - a José Adelino do Santos -, um lenço muito bonito às riscas brancas e pretas e uma saia de que gostava muito sobre as calças: "Como as ceifeiras usavam naquela época." Do resto desse dia, a memória varre-se.
É por essa razão que o Arquivo Municipal está a tratar cerca de 60 fundos que as UCP entregaram para que a história de uma época não se perca. A responsável pela instituição é Indalete Lebre, que há dois anos toma conta do espólio e da organização da documentação que chega a monte para ser tratada e arquivada em múltiplas caixas identificadoras da cooperativa e do conteúdo.
Na sala de expurgo do arquivo, está a trabalhar Adelaide Menino. É a responsável por pôr em ordem os milhares de folhas que ainda aguardam pelo trabalho de catalogação. Antes, irá preparar os documentos, tirando os agrafos ferrugentos - que se acumulam numa pilha ao fim de um dia de trabalho -, retirar a sujidade das folhas e limpar o pó que cobre a maioria deles. Por obrigação, Adelaide já tem de observar cada um deles, mas acaba sempre por demorar um pouco num ou noutro porque não resiste a olhar para alguns com mais atenção. É que muitos dos nomes que vê surgir na lista de salários a pagar são seus conhecidos: "Uns já morreram, mas de outros lembro-me muitíssimo bem."
Muitas das situações descritas nas actas das reuniões são-lhe familiares porque também foi cooperante da UCP Pedro Soares, na Torre da Gadanha....
HOJE
35 anos depois da ocupação da herdade do Monte do Outeiro, o panorama é de abandono. Mais de cem divisões - casas, escritórios, oficinas e armazéns - estão esventradas, e só uma tem um cadeado a fechar as suas portas. O proprietário que se opôs à ocupação, conhecido como Zé da Palma, morreu pouco tempo depois, e os herdeiros, após receberem as terras, acabaram por as arrendar. Não há vivalma na região e é preciso procurar bem para encontrar alguém. Jorge Valente está a treinar o seu potro de três anos e lembra-se de ter ouvido muitas histórias sobre o caso. Todas mortas e levadas pelos ventos que batem aquela planície de muitos hectares cobiçados a 10 de Dezembro de 1974 e que incendiaram Portugal....
AMANHÃ
"A terra a quem a trabalha" era a frase de 1974/75. Os que a ocuparam para trabalhar reformaram-se ou morreram. Os filhos abandonaram o interior e os netos vêem com mais bons olhos um comando de PlayStation nas mãos que o cabo da enxada. Os proprietários que receberam as terras de volta, a maioria com melhoramentos em relação ao tempo em que as perderam, tiveram uma recompensa acrescida: a União Europeia paga- -lhes para não trabalhar a terra. Aos herdeiros, só resta beneficiar-se da política de subsídios e aguardar por um espanhol que veja nessas terras a possibilidade de obter lucro. A história da luta pela terra está agora presa nas várias celas da ex-cadeia de Montemor-o-Novo e só é libertada quando um historiador se oferece para fazer o seu julgamento."
Texto completo em: http://dn.sapo.pt/gente/interior.aspx?content_id=1487924
por João Céu e Silva (textos) Arlindo Camacho(fotos)
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