Da esquerda para a direita: Vasco Gonçalves, Otelo Saraiva de Carvalho e Rosa Coutinho Eduardo Lourenço, que assina o prefácio do livro "O dia inicial", escreve que o 25 de Abril foi "o dia de pura glória de Otelo e não terá outro maior". Talvez por isso Otelo Saraiva de Carvalho insista na ideia que, no dia 26, a sua missão estava cumprida e o seu desejo era voltar a dar aulas na Academia Militar. Não foi assim e, 37 anos depois, Otelo defende, com a mesma convicção de outros tempos, a democracia directa e justifica os excessos do PREC. "Exorbitei muitas vezes as minhas funções, eu reconheço isso, mas a revolução era para se fazer ou não?", diz a certa altura desta conversa o operacional de Abril, que, perante a insistência sobre os métodos utilizados durante o chamado período revolucionário em curso, remata com um "tinha de ser assim, pá". Foi nessa altura que mudámos de assunto para falar do país, do FMI, do governo ou das próximas eleições. Otelo resume o que pensa e sente numa frase: "O desgosto é grande."
No livro "O tempo inicial" relata o fim da acção que desenvolve no Posto de Comando e sublinha que ficou sozinho. Às 13 horas do dia 25 de Abril, quando toda a gente festejava nas ruas, o Otelo era um homem só?
Aquela gente toda que estava no Posto de Comando saiu para ir ver a alegria que estava nas ruas e eu dei comigo sozinho. Arrumei as coisas - as granadas e as pistolas que tinham para ali ficado - e fui-me embora. Estava sozinho. O Sanches Osório e o Lopes Pires disseram, mais tarde, que estiveram lá até ao dia 27, mas quando eu saí não estava lá ninguém. Apaguei a luz, fechei a porta, meti-me no carro e fui para casa. A minha missão estava cumprida.
E foi para casa?
Fui. Eu despedi-me da minha mulher no dia 23 e fui dormir à Pontinha nessa noite por uma questão de precaução. No dia 24 fui para o Posto de Comando. Na noite de 23 a minha mulher não sabia ainda o que eu era no movimento e expliquei- -lhe: "Vou fazer uma revolução. Aqueles papéis que eu andava a escrever estão relacionados com as missões que estão distribuídas e eu vou coordenar. Eu vou amanhã iniciar a revolução."
E qual foi a reacção da sua mulher?
Ela perguntou o que é que podia acontecer se nós fôssemos derrotados e eu disse-lhe: "Não, olha, na sexta-feira estou cá para almoçar contigo." Quando saí do Posto de Comando fui para casa e disse-lhe: "Vamos almoçar."
Estamos numa situação de crise grave. Não só financeira, como económica e política. Há o risco de haver uma nova ruptura como no 25 de Abril de 1974?
Estão a ser criadas condições para isso. Curiosamente o poder capitalista acaba sempre por se encaminhar para o suicídio. Estes regimes capitalistas, regimes da burguesia, têm tendência para isso. Vão sempre encontrando novas formas de se manter no poder, mas a verdade é que se vão suicidando.
Encontra algum paralelo entre o fim da ditadura e os tempos que estamos a viver?
Talvez pela teimosia na continuidade de uma política que já não é aceite. O aumento do desemprego e do custo de vida, que leva a uma cada vez maior dificuldade do povo, pode levar também a uma eclosão social que, sendo do tipo de uma insurreição popular sem nenhuma organização, sem nenhum comando, pode levar a um desastre. Por outro lado, se houver algum comando sobre essa insurreição levada a cabo ou por partidos ou por Forças Armadas pode vir a transformar-se numa nova ditadura. Correm-se sempre riscos, mas é o próprio regime que vai criando condições para ser abatido. Foi o que aconteceu com o fascismo em Portugal, que demorou muito tempo, mas acabou por acontecer.
Imagina hoje as Forças Armadas a tomarem alguma posição contra o regime?
Não, as circunstâncias são diferentes. Em 1974 as Forças Armadas estavam numa guerra colonial e era obrigatório o serviço militar. Com excepção do quadro permanente, os outros eram compelidos à prestação do serviço militar e quando se dá a oportunidade de alterar o sistema essa massa enorme tem tendência a apoiar uma acção deste género. Actualmente as Forças Armadas têm corpos de voluntários - houve uma redução enormíssima do número de efectivos - que ganham ajudas de custo e estão bem. Só se poderá criar condições no âmbito militar para uma revolta se o governo, a certa altura em desespero, começar a reduzir as vantagens económicas. Começar a reduzir os salários, as pensões ou a retirar regalias como o 13.o mês ou o 14.o mês.
O que pode acontecer com as medidas de austeridade que estamos a negociar com as instituições europeias?
O que vai acontecer agora, com a intervenção do FMI, se atingir os militares pode criar condições para uma revolta.
Se Marcello Caetano tem resolvido o problema da guerra colonial, o 25 de Abril não teria existido?
Se tivesse encontrado uma solução política para a guerra colonial acho que sim, mas já não ia a tempo. O grande culpado da guerra colonial foi o Salazar. O Marcello Caetano ficou com o menino nos braços e não teve força para encontrar uma solução política.
Vasco Lourenço diz que, se fosse ele a comandar, não teria sido o general Spínola a ir receber o poder de Marcello Caetano. Podia ter sido diferente?
Eu queria que fosse o Salgueiro Maia, mas o Marcello Caetano tinha aquela perspectiva de entregar o poder a um general e o livro "Portugal e o Futuro" tinha o nosso apoio. Há até um encontro, na rua, em que o general ia no carro e parou num semáforo vermelho, baixou o vidro e disse-me: "Otelo, o Marcello não quer que eu publique o livro." E eu disse: "O meu general tem de publicar." E então ele diz-me que o Marcello tinha dito que se demitia. Eu respondi-lhe: "Mas é isso que a gente quer e nós apoiamos." Portanto já havia um conjunto de circunstâncias que fizeram com que eu, com a concordância do Vítor Alves e do Charais [Franco Charais], tenha dito ao Spínola que estava mandatado para receber o poder.
Preferia que tivesse sido o Salgueiro Maia?
Podia ter sido entregue a um capitão, mas quem é que geria a política? A perspectiva de serem os generais a formarem uma Junta de Salvação Nacional foi uma proposta do Vítor Alves, que era um homem muito realista, e quando o Vasco Lourenço e outros voluntaristas diziam nós vamos ganhar o poder, eu dizia que não me sentia politicamente preparado para agarrar nas responsabilidades políticas do país. E para que a revolução fosse reconhecida em todo o mundo tínhamos de ter generais, e com o maior prestígio possível. O novo poder em Portugal foi reconhecido imediatamente em todo o mundo, mas se tivéssemos sido nós a tomar conta da situação o terceiro mundo era capaz de aplaudir, mas o mundo ocidental não.
Qual foi a participação de Spínola no 25 de Abril?
O Spínola colaborou à distância. O grupo político liderado pelo Vítor Alves entregava-me as bases programáticas que o Melo Antunes tinha deixado em 23 de Março e iam limando aquilo que poderia ser mais agressivo. E eu levava isso a um major spínolista, que todos os dias frequentava a casa do general, e ele dizia quais eram as suas discordâncias em relação a algumas frases. As frases ou os vocábulos tipo "fascista" ou "democracia" o Spínola cortava para não tornar aquilo um texto muito político. Depois disso eu voltava a entregar ao Vítor Alves. O resultado é que no 25 de Abril o programa político do MFA, alterado em algumas coisas pelo próprio Spínola, estava preparado para ser difundido. O Spínola estava hipotecado a esse programa.
O Otelo chegou a ser convidado para primeiro-ministro?
Fui convidado para tudo, mas recusei sempre.
Como é que foi gerindo o poder?
Com dificuldade. Logo a seguir ao 25 de Abril eu remeti-me ao meu cargo de professor na Academia Militar. E quando fui esperar o Vasco Lourenço, que regressou dos Açores no dia 28, eu disse logo que a minha missão estava cumprida. O Vasco Lourenço disse-me: "Tu és maluco, agora é que isto vai começar." Mas eu achei que a minha missão estava cumprida e fui mesmo para a Academia Militar.
Mas depois mudou de ideias...
Uns dias depois fui chamado para me apresentar na Cova da Moura e o Charais veio ter comigo e disse-me: "Nós estamos a preparar um decreto-lei que vai ser lançado dentro de dias, que é o Copcon [Comando Operacional do Continente] para acções de vigilância e de defesa da revolução e vais ser tu o comandante-adjunto e o general Costa Gomes assume o comando. A malta quer que sejas tu." E eu disse: "Eh pá, mas que chatice, mas para quê isso?" Depois fui chamado ao Spínola - ao gabinete do Presidente da República provisório -, que me disse que eu iria ser o chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas.
E não aceitou.
E eu disse: "Não vou de certeza, não quero promoção nenhuma, não quero nada a cheirar a regalia." E, nessa altura, o Monge [Manuel Monge] propõe-me para a Região Militar de Lisboa e eu muito a contragosto lá aceitei. Mas também disse: "Vocês não esperem que eu vá ser um general tipo altos estudos militares. Vou ser um general revolucionário e depois não fiquem escamados comigo quando eu começar a tomar atitudes que transcendem os valores do regulamento de disciplina militar."
A verdade é que houve muita gente que não gostou que o Otelo tivesse ultrapassado os seus poderes.
Essa exorbitância decorreu naturalmente pelo facto de durante o PREC [Período Revolucionário em Curso] ter havido uma desresponsabilização total de todos os sectores da actividade pública. Os ministros existiam não sei para quê. Vinha gente ter comigo ao Copcon a dizer que era preciso resolver o problema na fábrica, porque o administrador tinha fugido para o Brasil com o dinheiro, e eu dizia que isso era com o Ministério do Trabalho, mas eles de lá diziam que o Copcon é que resolvia. As ocupações do Alentejo começaram por uma decisão minha. Os trabalhadores vieram ter comigo a dizer que estavam à rasca, porque se ouvia falar muito da reforma agrária, mas a verdade é que os latifundiários todos os dias estavam a levar o gado e a deixar as terras abandonadas.
Disse-lhes que a solução era ocupar as terras...
Disse-lhes para ocuparem as terras e dei ordens à GNR que os deixasse à vontade para começarem a trabalhar. Em pouco mais de uma semana um milhão e duzentos mil hectares de terras foram ocupados.
Que reacção houve a essa decisão?
O Vítor Alves disse-me: "És maluco, mandaste ocupar as terras." Exorbitei muitas vezes as minhas funções, eu reconheço isso, mas a revolução era para se fazer ou não?
Tomava essas decisões sozinho ou ouvia outras pessoas?
Nada, porque os conselhos eram sempre do género "tem calma, isso resolve-se daqui a três meses". Considerei que havia a legitimidade revolucionária.
Hoje reconhece que cometeu muitos excessos?
Reconheço, mas faria tudo outra vez. Não me arrependo daquilo que fiz. O único excesso que podia ter evitado foram os mandados de captura em branco, mas tinha uma diversidade tão grande de funções que não tinha a possibilidade...
... de fazer tudo ao mesmo tempo?
Eu era a única entidade no país que podia assinar mandados de captura. Ora eu era comandante da Região Militar de Lisboa, era comandante do Copcon. Eu saía do Copcon às quatro da manhã e no outro dia já lá estava às nove. E se fosse preciso um mandado de captura a meio da noite? Eu pensei que era preciso racionalizar e deixava dez mandados de captura por preencher. Foi uma decisão do Costa Gomes. É uma ordem que me é dada e o Costa Gomes invoca a legitimidade revolucionária. A Constituição tinha sido abolida. Uma revolução ou se faz a sério ou não e não podemos aplicar num processo revolucionário os ditames de uma democracia. Tinha de ser assim, pá.
Ficou surpreendido com o resultado das primeiras eleições, a seguir ao 25 de Abril, que deram a vitória ao PS?
As eleições foram uma aposta nossa. No prazo de um ano o objectivo era realizar eleições e até fiquei feliz, porque vi que o PCP, que se arvorava em dono da verdade e líder das massas, ficou em terceiro lugar.
Mário Soares diz que numa viagem a Lusaka em que os dois falaram pela primeira vez o Otelo se identificou como um socialista tipo Olof Palme...
Não me lembro disso, mas é possível que tenha reproduzido essa frase, que eu tinha ouvido do Vasco Gonçalves.
Do Vasco Gonçalves?
O Vasco Gonçalves tinha-me dito que seria bom, dentro de dois anos, ter uma democracia do tipo sueco.
E mais tarde conheceu Olof Palme.
Tive com ele na Suécia e gostei muito dele. Expus-lhe a minha perspectiva sobre a democracia directa e ele disse-me que isso era utópico e que não era possível implementar esse modelo no mundo ocidental. Não consegui convencê-lo.
Nem ele a si?
Nem ele a mim, mas é possível que eu tenha dito isso ao Mário Soares e na altura era essa a minha perspectiva. Eu tinha aderido facilmente ao programa do MFA, mas o PREC abriu o horizonte para outra possibilidade, de criar um modelo novo de regime, que era a democracia directa.
Um modelo com que nenhum partido concordava. Quais foram os líderes políticos que conheceu melhor?
O Sá Carneiro, conheci-o muito pouco. O Freitas do Amaral, nunca tinha falado com ele até há três anos, no lançamento de um livro, em que ele veio ter comigo e eu gostei de o conhecer, mas com quem eu tive mais contactos foi com o PS.
E com Cunhal?
Tivemos um contencioso sério por causa das presidenciais de 76. Durante o PREC ele promoveu um jantar em casa do Silva Graça, que foi comer para a cozinha com a mulher e com as filhas e deixou-nos a sós.
Cunhal não estava a gostar do rumo dos acontecimentos e convocou-o para o levar para o lado do PCP?
Tivemos um bate-papo violento. Ele começou a fazer críticas ao MFA e a dizer que o MFA devia fazer isto e aquilo. E eu disse-lhe: "Ó doutor, eu não lhe vou dizer o que é que deve fazer no Partido Comunista. Eu considero que o PC tem tido acções muito más, por vezes, que são prejudiciais à revolução e se quiser eu faço aqui uma lista do que é que o seu partido tem feito, mas não lhe admito que me dê orientações, porque o MFA não tem nada a ver consigo, nem com nenhum partido, e se eu precisar de orientações peço ao Melo Antunes..."
Nunca teve boas relações com Álvaro Cunhal?
Não. Foi o meu principal inimigo
Já com Mário Soares foi diferente.
Uma relação cordial. O Mário Soares e o Almeida Santos convidaram-me várias vezes para ser cabeça-de-lista do PS nas eleições para a Assembleia da República. E uma vez num jantar no Hotel Altis havia uma mesa com a malta toda da Internacional Socialista. O Soares, o Willy Brandt, o Shimon Peres... e a certa altura fui chamado para a mesa. O Soares levanta-se e logo a seguir levanta-se aquela malta toda da Internacional Socialista e eu pensei ''eh pá o que é isto?'' Apresenta-me o Willy Brandt, que era o presidente da Internacional Socialista, e diz-lhe: "O Otelo, o nosso herói, que nós já temos tentado trazer para o partido, mas ele não gosta de nós." E eu disse-lhe: "Os melhores amigos que eu tenho são no campo político do PS, mas eu não gosto de partidos."
Candidatou-se à presidência da República sem o apoio de nenhum partido. Não queria o poder, mas candidatou-se a Presidente...
Sabia que tinha poucas hipóteses de vencer com um candidato como o Eanes, que eu não tinha dúvida de que iria ganhar à primeira volta. Concorri para saber o que é que as minhas ideias valiam perante o povo. A ideia era uma democracia participativa, com as pessoas a participarem activamente e diariamente e não só de quatro em quatro anos.
Teve o apoio, entre outros, de Ferro Rodrigues, que mais tarde foi líder do PS.
Foi em casa dele que lancei os GDUP. Eu tinha vindo de Cuba e tinha visto essa ideia de poder popular. Eram os grupos dinamizadores de unidade popular, que surgiram como a base de apoio da candidatura, que não tinha nenhum partido a apoiá--la. Foi um êxito notável e a minha satisfação é verificar que hoje há no país gente que pertenceu aos GDUP que são presidentes de câmara. Ficou aí uma semente, que não sei se irá dar alguma erva.
Continua a culpar o PCP por ter sido preso preventivamente durante cinco anos, na sequência do caso FP-25?
Hoje não tenho dúvida nenhuma. Foi o secretariado do PCP que, quando em 84 anunciei que ia ser cabeça-de-lista da FUP [Força de Unidade Popular] por Lisboa ao parlamento, resolveu meter-me na prisão para impedir outro desastre eleitoral, como em 1976. E tenho dito isto sem que exista da parte da direcção do PCP alguma palavra em contrário.
Disse que se soubesse como o país ia ficar não tinha feito o 25 de Abril. Arrependeu-se?
Eu reportei-me à situação em que vivíamos antes do 25 de Abril para dizer que os jovens de hoje, que são obrigados a emigrar, estavam numa situação idêntica à nossa com uma guerra injusta. E o que digo é que se não tivesse havido o movimento dos capitães, eu isolado possivelmente teria sido obrigado a sair do país e não teria feito a revolução.
Vasco Lourenço diz que essa declaração é incompreensível.
Por causa dessa frase, que foi explorada como um sound byte, tenho recebido muitas mensagens a dizer que de facto a classe política pôs o país de rastos. A frase não foi bem entendida. O que eu digo é que as pessoas isoladas não conseguem um combate capaz de provocar alterações. Quando se juntam esforços então, sim, vale a pena.
Valeu a pena ter feito o 25 de Abril?
Sim, bolas. O derrube da ditadura e a possibilidade de sermos livres vale sempre a pena. É irrefutável.
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